Monday, October 10, 2005

NO RASTO DE...fundação atlantica


A "fábrica portuguesa"

Todos conhecem a história da mítica editora inglesa Factory, contada
várias vezes e até registada no altamente ficcionado filme de Michael
Winterbottom, "24 Hour Party People"." "O que muitos ignoram é que
Portugal também teve a sua "Factory" – a "Fundação Atlântica (FA)",
fundada em 1983 por Miguel Esteves Cardoso, Pedro Ayres Magalhães e
Ricardo Camacho. A "FA" durou até 1985 e produzia e prensava discos
que eram distribuídos pela "Valentim de Carvalho".

Miguel Esteves Cardoso era jornalista e tinha estudado em Oxford. Foi
correspondente de publicações portuguesas em Manchester, onde acompanhou
a evolução da Factory e criou uma extensa rede de contactos. PEdro Ayres
Magalhães era membro dos Heróis do Mar e estudante de Psicologia. Ambos
eram amigos de infância. Ricardo Camacho era médico, músico e produtor.
Trabalhou com Miguel Esteves Cardoso pela primeira vez num "single" de
Manuela Moura Guedes. Foi após este lançamento que as três figuras
centrais da "FA" começaram a pensar em fazer algo pela música do seu
país, e foi assim que a editora nasceu.

Segundo Ricardo Camacho, a "FA" funcionava anarquicamente: "na altura
éramos pessoas com muitas ideias e sem sentido prático. Poderíamos ter
tornado a história da música portuguesa diferente se tivéssemos
conseguido sobreviver mais dois ou três anos. A "FA" desapareceu numa
altura em que os seus grupos atingiram vendas que lhe teriam permitido
subsistir mais tempo e também avançar com outros projectos que nunca
chegaram a realizar-se."

Dentro da editora, Camacho dirigia a produção, Magalhães o reportório e
Cardoso era o Director-geral da companhia, enquanto outros tratavam da
gestão comercial, da questão jurídica, da imagem, das actividades de
promoção e informação e das actividades externas de divulgação: "o
Miguel tratava dos contactos com Inglaterra. Eu e o Pedro trabalhávamos
em estúdio. E discutíamos muito, tínhamos muitas ideias, nem todas eram
convergentes. Mas era giro."


"Na Fundação da FA: Os Nossos Primeiros Propósitos", primeiro
comunicado público da editora, foi escrito por Miguel Esteves Cardoso em
1983. O documento expunha as ideias da Fundação. Esta pretendia fazer
com que a exportação excedesse a importação e contribuir para aumentar a
quantidade de produção nacional no estrangeiro. Usando pouco dinheiro,
pretendia cortar com todas as despesas extra e canalizar todos os meios
para a produção. Utilizou uma "estética da pobreza", ou seja, procurava
qualidade sem gastar dinheiro. Nunca houve dinheiro próprio da editora,
pelo que as despesas eram suportadas pela "Valentim de Carvalho".
Ricardo Camacho explica: "Agora gravo coisas em casa, antigamente
tínhamos que ir para estúdio gastar dinheiro. Por isso, ao fazermos um
único disco, estávamos endividados durante muito tempo. Foi isso que
rebentou com a "FA" Hoje teria sido diferente."

Tanto Ricardo Camacho como Miguel Esteves Cardoso falam das pessoas da
"FA" como jovens inexperientes. Camacho diz que um dos factores que
levou ao fracasso da editora foi a existência de gente com
personalidades muito fortes dentro da mesma. "Não existia uma liderança.
Por exemplo, na "Factory" havia uma personalidade muito forte, o Tony
Wilson, como nas outras editoras independentes. Toda a gente queria
fazer o que lhe apetecesse. Isto não é viável numa editora sem meios."


Os discos nacionais da "FA", na sua maioria "singles", eram de
artistas como "Sétima Legião", "Delfins" ou "Xutos & Pontapés". A
Fundação lançou também discos estrangeiros, quase todos licenciamentos
de editoras inglesas. Entre os artistas estrangeiros da editora,
encontravam-se nomes como "The Raincoats" ou "Young Marble Giants".

Os objectivos que a "FA" propunha cumprir eram difíceis. A editora
acabou por fracassar economicamente. Ricardo Camacho explica: "Tivemos a
ideia de transpor para Portugal a experiência inglesa das editoras
independentes. Era um fenómeno desconhecido em Portugal, que o Miguel
tinha trazido de Inglaterra. Não o fizemos da melhor maneira, e como
pioneiros cometemos todos os erros que os que vieram depois puderam
evitar. Erros de relacionamento e avaliação do mercado e de distribuição."


A Fundação não chegou a ter sucesso, existindo com dívidas e fracassos.
Para Camacho, a FA "podia ter dado uma verdadeira editora,
verdadeiramente independente, e com capacidade económica para prosseguir
um projecto próprio. Dispersámo-nos por coisas sem lógica que não
encaixavam naquilo que devíamos estar a fazer. Gastámos imenso dinheiro
num projecto que nunca viu a luz do dia, que inclusivamente o PEDRO
AYRES MAGALHÃES foi gravar a Manchester. Pessoalmente, gostaria de ter
concentrado as atenções da "FA" na "Sétima Legião", nos "Xutos", e
naquilo que viriam a ser os "Madredeus"."



Curiosamente, a história da "FA", que tudo teve a ver com a da
"Factory", acabou até por se cruzar com a história da editora britânica.

Miguel Esteves Cardoso convidou uma das bandas do catálogo da "Factory"
para gravar em Portugal: os "Durutti Column", projecto do guitarrista
Vini Reilly, que vieram gravar um "single". Acabaram por gravar um disco
inteiro, "Amigos em Portugal". Ricardo Camacho conta que "Reilly estava
habituado a gravar com poucos meios, chegou cá e viu equiPedro Ayres
Magalhãesento como nunca tinha visto. O Tony nunca lhe tinha pago um
estúdio. Foi assim que conseguiu experimentar coisas novas e criar
aquele som."

A história não acaba aqui. Havia um acordo entre a "Factory" e Vini
Reilly que fazia com que a editora desse ao artista 50% das vendas
totais, descontando os gastos com tempo de estúdio. Não se sabia se este
acordo era válido para todo o mundo. A lei portuguesa especificava que
apenas se podia dar menos de 20% das vendas. Os ingleses acabaram por
ficar extremamente desiludidos por causa do dinheiro.

Esta é a versão portuguesa da história. Tanto Wilson como Reilly contam
outra versão. Wilson, na reedição de "Another Setting", um dos discos
dos "Durutti Column", escreve, a seguir a uma contextualização histórica
dos defeitos dos portugueses: "Amigos em Portugal. Amigos em Portugal?
Uma vez queixei-me à minha primeira mulher que o álbum tinha posto a
empresa do Miguel e dos amigos a andar, e mesmo assim quando o Vini
tocou em Lisboa seis meses depois nem um deles apareceu no concerto.
Porque é que haviam de ter aparecido? Honra, gratidão, dívida. Que
estupidez, eles são portugueses, não têm tais conceitos mundanos."

Tanto Miguel Esteves Cardoso como Ricardo Camacho se apressam a refutar
isto. Cardoso explica que foi a todos os concertos que Vini Reilly deu
em Portugal, enquanto Camacho explica que os "Durutti Column" chegaram
mesmo a tocar com equipamento da "Sétima Legião".

Tanto Tony Wilson como Vini Reilly julgam que "Amigos em Portugal" deu
muito dinheiro à "F.A". e fez da editora um sucesso, quando, na verdade,
nada disto parece ter acontecido.
Hoje em dia é muito difícil encontrar os discos que a "FA" lançou
entre 1983 e 1985. A última edição da editora saiu com o selo da editora
mas pela "EMI-Valentim de Carvalho". Era um "single" de Pedro Ayres
Magalhães, "O Ocidente Infernal"Adeus Torre de Belém". Foi este o adeus
de uma editora que ambicionou fazer algo pela música do seu país como
nunca havia sido feito, e como nunca se chegou a fazer.

Rodrigo Nogueira - publicado originalmente n'Os Fazedores de Letras
número 62 de 2005, adaptado

Já agora, a lista completa dos lançamentos da FA:
06"1983 - 2x7" - 1651873 - CLUBE NAVAL - Professor Xavier " Salva-Vidas
07"1983 - 7" - 1651897 - SÉTIMA LEGIÃO - Glória " A Partida
10"1983 - LP"MC - 1652071"4 - DURUTTI COLUMN - Amigos em Portugal
11"1983 - 7" - 1654577 - ANAMAR - Baile Final " Lágrimas
02"1984 - 7" - 2000527 - LUÍS MADUREIRA - O Teu Amor Sou Eu (Solo) " (Dueto)
05"1984 - 12" - 2001846 - QUANDO QUANGO - Love Tempo " (Mix) -
licenciamento Factory
06"1984 - 12" - 2002126 - THE WAKE - Talk About the Past " Everybody
Works So Hard - licenciamento Factory
06"1984 - 7""12" - 2002697"6 - DELFINS - O Vento Mudou " Letras
06"1984 - LP - 2401721 - THE RAINCOATS - Moving - licenciamento Rough Trade
07"1984 - LP - 2401811 - SÉTIMA LEGIÃO - A um Deus Desconhecido
07"1984 - LP - 2601701 - YOUNG MARBLE GIANTS, THE GIST, WEEKEND - Nipped
in the Bud - Licenciamento Rough Trade
09"1984 - 7" - 2002387 - XUTOS & PONTAPÉS - Remar Remar " Longa Se Torna
a Espera
01"1985 - LP - 2402681 - VIRGINIA ASTLEY - From Gardens Where We Feel
Secure - licenciamento Rough Trade
03"1985 - 7" - 2005607 - DELFINS - A Casa da Praia (Vocal) " (Mistura de
Areia)
09"1985 - 12" - 1775686 - Pedro Ayres Magalhães - O Ocidente Infernal "
Adeus Torre de Belém - lançamento EMI c

1 comment:

Paula Regina Duarte said...

Olá
Foi com emoção que encontrei este blog, na senda da Fundação Atlântica. Viajei a um passado que me foi muito querido. Todos os nomes sonantes são aqui citados, naturalmente. Cabe-me a mim mencionar a pessoa que criou a imagem da Fundação Atlântica, bem como algumas das capas dos discos ora editados, grafia e fotos da sua autoria. Sem louros nem fundos, com suor e alma. A minha singela homenagem ao José Carlos Vilela (31-10-1953/01-07-2011), meu parceiro por 26 anos, e co-autor dos nossos filhos.